Comunidades médicas lusófonas: raízes, realidades e solidariedade

Carlos Vital Tavares Corrêa Lima*

No ensaio Raízes do Brasil, lançado em 1936, o historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, ilustre filho de um pernambucano e de uma paulista, destaca a relevância da Península Ibérica para a identidade dos povos por ela colonizados.
O historiador, na introdução de sua obra que apesar da passagem do tempo mantém-se como referência para estudiosos brasileiros e de além-mar, escreveu:

“A Espanha e Portugal são, como a Rússia e os países balcânicos (e em certo sentido também a Inglaterra), um dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante, mantêm como um patrimônio necessário.”

O protagonismo de Portugal se alastrou pela América, África e Ásia, tendo como traço mais forte os estímulos e a consolidação da união idiomática dessas populações.
A língua portuguesa tem origem no século III a. C., e graças ao ímpeto dos desbravadores da Terra de Camões, hoje, cerca de 250 milhões de pessoas no mundo comungam da lusofonia e compartilham da crença do poeta Fernando Pessoa: “minha Pátria é minha língua!”

Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Macau, Moçambique e Timor-Leste, além de Portugal e Brasil, formam uma comunidade médica com raízes fincadas no século XV e que defronta-se na contemporaneidade com múltiplos desafios.

Assim, diante de uma nova ordem global com impacto na política, economia, educação e demais relações socais, os 480 mil médicos que atuam nos países com comunidades lusófonas precisam desempenhar o seu mister profissional como exercício de cidadania, em um contexto de diversidade caracterizado, com raras exceções, por desigualdades e desrespeito aos direitos humanos.
Com base nos dados mais recentes divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a comparação dos principais indicadores dessas nações revela as disparidades sociais nas quais convivem seus povos, particularmente no campo da assistência à saúde.

As imensas desigualdades existentes têm exemplo no valor per capita dos gastos assistenciais destinado à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento das doenças e à promoção de hábitos salutares, que oscila de US$ 2.096 ao ano em Portugal a US$ 37,3 em Guiné-Bissau.

Apesar da representação econômica do seu Produto Interno Bruto (PIB), o Brasil investe em saúde apenas US$ 947,7 por habitante ao ano, com participação do Estado no gasto sanitário total limitada a 48%. Trata-se de um baixo percentual, posto que, nos sistemas universais de saúde é recomendável uma contribuição estatal de pelo menos 70%.

Em Portugal, a participação do Estado corresponde a 64,8% do gasto sanitário total. Esse percentual de participação, ainda que inferior ao praticado por outros países desenvolvidos, como o Reino Unido (83,5%), a Alemanha (76,8%) e o Canadá (69,8%), tem sido suficiente para bancar ações que melhoraram seus indicadores epidemiológicos.

Dentre eles, são expoentes a queda na mortalidade infantil (até cinco anos), que passou de 4,4 óbitos por mil nascidos vivos em 2006 para 3,6 óbitos por mil nascidos vivos em 2015, e o aumento da expectativa de vida da população em geral, que, no mesmo período, foi de 78,4 anos para 81,5 anos.

Ambos os resultados estão vinculados à extensão do saneamento em Portugal que, há dois anos, atingiu percentual de 99,7% do território nacional, de acordo com dados do Banco Mundial. Foi uma relevante conquista da sociedade, em face da compreensão dos gestores de que a aplicação de recursos em água e esgoto não é gasto, mas investimento na prevenção de doenças.

Nos países lusófonos situados na África os indicadores divergem, em função dos padrões de desenvolvimento e da estabilidade política das nações.

Em Cabo Verde (74,7%), Angola (64,3%) e Moçambique (56,4%), a participação do Estado no gasto sanitário total, ao longo dos anos, supera na média a participação do Brasil.

Nessas nações africanas, observa-se que o investimento tem possibilitado a melhora de alguns indicadores de saúde, que, entretanto, permanecem muito distantes do ideal.

A mortalidade de crianças com até cinco anos vem baixando em todas elas. Entre 2006 e 2015, em Angola caiu de 200,5 óbitos por mil nascidos vivos para 156,9. Em Moçambique a queda foi de 127,8 mortes para 78,5. Em Cabo Verde a redução foi menos acentuada: de 27,9 registros de óbitos para 24,5.

A diversidade nos indicadores epidemiológicos das nações lusófonas persiste em relação à mortalidade por causas externas, oscilando de 8% dos óbitos em geral no Timor-Leste a 12,8% no Brasil.
Esse índice de violência varia de 8,9% das mortes registradas em Guiné Bissau a 10,7% em Angola, com ligeiras variações em São Tomé e Príncipe (10,5%), Cabo Verde (9,7%) e Moçambique (9,1%). Portugal, que tem índice de 4,1%, é uma exceção nesse parâmetro de comparação.

Esses dados tornam evidentes os cenários de desigualdades sociais nos países onde existem comunidades médicas de língua portuguesa.

O escritor moçambicano Mia Couto nos ajuda a encontrar os caminhos para a transformação dessas realidades! Disse ele em seu livro E Se Obama Fosse Africano?: “temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece. Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade da transcendência, recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação de um medicamento chamado inquietação crítica. Significa fazermos com a nossa vida quotidiana aquilo que fizemos neste congresso que é deixar entrar a luz da poesia na casa do pensamento”.

De fato, em uma visão poética e de ordem prática, o médico não é apenas um técnico, mas um cuidador do homem e da sua comunidade. Portanto, com a força de suas raízes históricas e culturais, ao mesmo tempo motivado, por compromissos vocacionais, às mudanças das realidades que colocam em risco a vida e o bem-estar dos seus povos, deve ser solidário e atuar com entusiástico engajamento em defesa das causas públicas.
* É presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM).

 

Palavra do Presidente publicada na edição nº 265 do Jornal Medicina. Acesse aqui a publicação.