Artigo: Ser médico, um sonho de criança

Chamo-me António Guterres, sou de origem humilde, filho mais velho de 7 irmãos. Desde muito cedo deixei os meus pais e irmãos e fui viver para Díli, capital de Timor-Leste, onde ficava em casa da irmã mais velha da minha mãe.

Sempre fui um menino esperto e mimado, talvez por isso os meus pais nunca me faltaram com amor e carinho e nunca deixaram de me ensinar a respeitar, a ser sincero e honesto.

Em muitos de meus sonhos tinha dois em especial, o primeiro era estudar e ser médico e o segundo era ser político.

Em 1997 terminei o 12º ano, numa escola secundária, localizada perto de Díli, chamada Kristal. A partir desse dia a minha vida transformou-se, pois começou aí uma nova fase muito complicada, já que tinha que escolher entre continuar os estudos na Indonésia ou deixar Timor-Leste e vir para Portugal.

É de salientar que também fui activista político muito cedo. Naquela altura já cresci e vivia na clandestinidade, por tanto, se escolhesse sair do país, eu tinha consciência de que o retorno era dado como incerto. Apesar de tudo, a vontade da Nação era maior que a minha, e por isso escolhi sair pedindo o direito de asilo ao abrigo do Estado Português. Cheguei a Portugal com mais três primos-irmãos em Agosto de 1997.

Os primeiros meses de adaptação da vida em Lisboa foram muito duros e difíceis. Foram dias e noites a pensar na família, mas sempre com a lento de me lembrar dos motivos que me traziam até aqui, apesar das dificuldades, desistir jamais! Comecei então a frequentar o curso português, pois o sonho de ser médico continuava vivo. Um sonho de criança que se tornou um ideal. Era irresistível!

Após toda essa jornada, ingressei na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1999 ao abrigo contingente especial. Era um sonho tão nobre para mim estudar na Universidade de Coimbra, dizendo a mim mesmo: “é o momento certo para amadurecer”.

Estudar nesta cidade foi um desafio aliciante, porém exigente! Houve uma vez em que um colega se dirigiu a mim e viu o meu trabalho escrito, dizendo: “…o teu português é fraquinho não sei se vais conseguir acabar o curso …”. Sem perder o tempo, reagi logo: “Eu sei que o meu português é muito fraquinho, mas irei termina-lo e ser um bom médico”. Tudo isso me fez crescer e influenciou positivamente a minha capacidade de superar os desafios, as dificuldades enfrentadas e dolorosos obstáculos que me permitiram ser determinado e resiliente.

Apesar de não ter sido o melhor aluno de medicina, vivi momentos marcantes da minha formação académica e para além do sonho de criança realizado, sabia que este curso e o que aprendia me iria criar condições para ajudar o meu povo e o meu País.

Saliento que todas as etapas foram vivenciadas com muito optimismo, acreditando que quando há dedicação o resultado almejado será alcançado. Sei que não atingi tudo que desejo, apesar de me sentir feliz com tudo que tenho. Esta experiência pessoal constitui uma oportunidade de vivências teóricas e práticas as quais possibilitaram a integração em várias iniciativas lavando a cabo o incentivo de difusão e enriquecimento da Língua Portuguesa.

A valorização da Língua Portuguesa e da Lusofonia são para mim uma prioridade, pelo que é uma honra participar nos trabalhos e desenvolvimento da Comunidade Médica de Língua Portuguesa (CMLP). Por outro lado a integração de Timor-Leste na CMLP é uma oportunidade histórica para fortalecer a cooperação, estreitar a partilha de conhecimentos e reforçar os laços no apoio à formação médica e na melhoria das políticas de saúde.

Para finalizar, a todos os bons amigos que Deus me deu, agradeço e digo que eles são pontes que nos fazem chegar a lugares mais longe. Quem sabe o que mais vem pela frente… mas quando olho pra trás, vejo que tudo realmente valeu a pena!

Muito obrigado pela vossa atenção e pelo vosso carinho.

Covilhã, 24 de Julho de 2017

Dr. António Guterres